segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Marcenaria do Rio.

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Tudo correu como o planejado. Bem cedo o morador saiu para o trabalho e deixou a casa sem ninguém até as quatro da tarde. Ainda não havia movimentação na rua devido ao horário. À espreita, dois esperam o homem dobrar a esquina para se dirigirem até sua casa. 
-É agora! - disse um.
-Vamos rápido! - completou o segundo já correndo em direção à casa.
Caíram os dois janela adentro e logo puseram-se a averiguar o que tinha de valor para ser levado.
-O altar! Pega o altar! - disse um em tom de alarme porém sussurrando. 
Rapidamente jogam um altar dourado pra dentro de uma bolsa de pano e vão sendo adicionadas outras coisas como um rádio, tapete e um cofre de barro que provavelmente abrigava algumas economias. A ação é rápida e fria. Em menos de cinco minutos os dois sujeitos já estavam na rua. Sobrou, em meio ao silêncio da rua naquela hora, somente o barulho dos passos apressados à procura de algum lugar para se esconder e dividir os objetos roubados.  

*

O dia passara como normalmente passam os dias: dez peças já talhadas e prontas para receberem os primeiros toques de tinta. Isso é o que, a cada nove horas de trabalho, Raju e seus empregados conseguem produzir. Serrote, martelo, formão, plaina, lixa. As peças são ricas em detalhes e os detalhes em breve serão ricos em cor. Logo depois que as peças estiverem devidamente esculpidas e lixadas irão diretamente para a mão de algumas mulheres encarregadas da pintura das mesmas. As cores aparecem em pequenos potes de tinta no chão da oficina. Neles elas separam o azul, vermelho e a mistura de uma tinta dourada com alguma quantidade de ouro em pó.  Tudo feito com dedicação e uma paciência religiosa. E não haveria de ser de outro jeito. A marcenaria de Raju está ajudando na restauração de um templo budista de Bhaktapur. À medida que as peças vão ficando prontas e posteriormente pintadas elas serão montadas no interior do templo; uma espécie de rodapé composto de placas de madeira de vinte centímetros de altura por quarenta de largura que corre toda a extensão das paredes e se estende até o teto, formando  uma espécie de moldura para cada uma das paredes do lugar. 
Raju hoje foi o primeiro a chegar no trabalho, por volta das seis da manhã já caminhava em direção à marcenaria passando pela praça Durbar quase que sozinho. Antes ainda dos comerciantes que logo encheriam o lugar com suas mercadorias e artesanatos coloridos.  Passou antes de tudo. 
Ao chegar na oficina arrumou todo o material como convinha: de forma calada e respeitosa, dada à finalidade do serviço. Falou com seus empregados à medida que iam chegando ao trabalho. Três ao total. Krishna, Rama e Riashi. Desbastou e lixou as peças durante toda a manhã. Ao meio dia, após a refeição composta de batatas, arroz espinafre e carne de búfalo, preparada e servida na própria marcenaria -onde todos os homens comeram utilizando as mãos juntos em pratos servidos no chão- Raju avisa que vai sair até o templo para entregar as partes que já haviam sido pintadas. 
-Em dez minutos eu volto, vou somente entregar essas peças prontas ao artesão que está montando o templo. Feito isso retorna para a marcenaria e é recebido com alívio por um dos empregados, como se tivesse estado ausente por algumas horas. Prontamente é chamado à conversa. A notícia era de que a mãe de Krishna havia falecido. 
-Krishna teve que ir pra casa mais cedo hoje -relatou Riashi. Enquanto você esteve ausente um familiar veio avisá-lo de que sua mãe não conseguira resistir à doença que havia lhe colocado na cama. O garoto já não tinha o pai. Morreu quando ele ainda era pequeno.
-Eu nem sabia que ela estava doente -disse Rama no canto da oficina. Se eu soubesse diria ao garoto para ir pra casa cuidar dela.
Krishna é o mais novo entre os marceneiros. Um rapaz aprendiz do experiente Rama que ao ver a idade se aproximando já se preocupa em passar o saber que desenvolveu. 
Raju parou em seus pensamentos e abaixou a cabeça por um momento para dizer com resignação:
-Bom…Não temos como consertar o curso de um rio. É uma força que não temos. Devemos aprender com a vida então. Nos resta apenas escutar o que o rio nos diz. É como o som de mil vozes juntas, milhares de decisões sendo tomadas ao mesmo tempo gerando infinitas possibilidades.  Seu percurso é incontrolável. 
-Acho que o mais acertado é irmos também e ajudá-lo a preparar a cremação -completou Rama. 
Todos concordaram e puseram-se a fechar a oficina que funcionara só durante meio expediente naquele dia.  O templo poderia esperar o tempo de se chorar os mortos. 
-Vá até a casa do garoto, Rama. Veja do que ele precisa. Eu vou com Riashi cortar a lenha para a cerimônia. 
Esperamos vocês no crematório. 
Após Raju ter dito estas palavras Rama se despediu e foi ao encontro do menino. Enquanto isso, do lado de fora da marcenaria, os dois empenhavam-se em cortar as lenhas do tamanho necessário para a cerimônia. Em duas horas tudo estaria pronto. 


*


À beira do rio Bagmati, no templo hindu de Pashupatinath acontecem inúmeras cremações ao longo do dia. É um local extremamente importante para o hinduísmo. Raju que nasceu em uma família budista não se furta em ajudar. Primeiramente consola o jovem Krishna da dor e lhe diz algumas palavras a respeito da libertação da alma de sua mãe. Porém, apesar do bom convívio entre hinduísmo e budismo no Nepal, em Pashupatinath só podem permanecer os da religião hindu. Cabendo às outras religiões ou a turistas permanecerem somente até a ponte que atravessa o rio  e leva ao templo. Por isso Raju detém-se na ponte e pode ficar somente acompanhando a cerimônia à distância. Rama coloca as lenhas em uma pedra à margem do rio junto com Riashi formando uma espécie de cama. Nela, dois familiares de Krishna colocam o corpo de sua mãe envolvido por um pano laranja bem ao centro da pira. O rapaz assiste inerte toda a cerimônia. Tem um olhar que mistura descrédito e letargia. Parece não saber o que está acontecendo.
Logo após Rama ter espalhado alguns feixes de palha em cima do corpo um familiar que estava presente acende uma lasca de bambu e com ela acesa em suas mãos começa uma oração. Circunda três vezes o corpo repetindo aquelas palavras e deposita o fogo na altura do peito da mulher morta. Raju, por não estar perto, só pôde ver que naquele momento algo se abriu dentro do peito do menino. Algum nó se desfez e o choro lhe chegou como muitas águas desembocando no mar. Agora o menino via, sentia e mal conseguia ficar de pé em meio a saudade que já lhe apertava o coração. 
Quando a fumaça já ia se adensando Riashi e Rama colocaram mais lenhas já acesas por debaixo da pira para dar fim ao ritual e deixar corpo queimar. 
Nesse instante o cheiro do corpo queimado começou a tomar conta do lugar. Alguns turistas que haviam parado para assistir o ritual da ponte não suportam o cheiro e logo se retiram do lugar para continuarem a documentação fotográfica de suas viagens. Alguns familiares entendem a cerimônia como encerrada e lentamente também tomam o rumo de suas vidas. Permanecem Krishna, Rama e uma pessoa da família junto à pira e Raju observando da ponte. 
O rio Bagmati é um rio muito usado pela população de Katmandu portanto não conserva mais uma aparência limpa. Comumente é um escoamento de esgoto e detritos porém também é usado até para lavar roupas. Dentro do rio - que às margens do templo deve ter no máximo quarenta centímetros de profundidade - todo tipo de coisa pode ser encontrado. Ao final da cremação, os restos do corpo que não viraram cinza são jogados no rio. Nesse momento, Krishna e Rama caminham juntos até a ponte para encontrar com Raju e é nessa hora que aparecem alguns meninos, aparentando treze ou quatorze anos para se aproveitar dos restos da cerimônia. Munidos com pedaços de imã amarrados na ponta de um barbante eles procuram nas águas em que o corpo foi jogado alguma coisa de valor. De moedas à jóias queimadas junto com os mortos eles vão se abastecendo do que encontram no rio. Dois deles carregam  um carrinho de mercado dentro do rio. Pegam até os restos do corpo para procurarem algo que tenha sobrado da pira. 
Raju abraça Krishna no meio da ponte cercado pelo cheiro forte e pela tristeza do garoto. Não consegue dizer  nada não ser pela enigmática opinião:
-É o rio, Krishna. Ele leva uns e traz sorte a outros. 
Poucas foram as palavras mas ao que lhe pareceu o garoto compreendeu algo. Despediu-se como um braço de rio. Deu um beijo na testa do menino e se sentiu um outro afluente indo pra casa. No caminho só pensava na própria história, no rio de sua vida. Ficou feliz pois pensava que ainda tinha um lar, suas economias e a quem dirigir suas preces.

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